quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A Indissociabilidade do Contexto: O Significado como Fenômeno Social


por Nicolai Dianim

A compreensão da contemporânea consonância dos fenômenos literários com outras espécies de mídia passa, obrigatoriamente, pelo enquadramento da literatura como um produto sócio-histórico-cultural.

De acordo com Schmidt (1990), a estética da recepção comprovou que os textos não são dotados de significação própria, singular, que é repassada aos leitores. Encará-los dessa maneira implicaria em reduzir ao extremo uma complexa relação formada por autor-texto-leitor, sem mencionar as infinitas variações contextuais em que essa tricotomia pode estar inserida.
Os estudos marxistas, feministas e sócio-históricos em literatura claramente revelaram que os fenômenos literários, desatracados de sua origem e de seu locus em realidades sociais, tornam-se vítimas da arbitrariedade interpretativa. Os fenômenos literários são uma parte da “vida literária”, que, por sua vez, está integrada à vida social como um todo (ibidem, p. 4, tradução nossa).
Um exemplo prático, bastante conhecido entre os estudiosos das ciências humanas, principalmente entre os tradutores, é a narrativa Shakespeare in the Bush (ou “Shakespeare no Mato”, em português), da antropóloga norte-americana Laura Bohannan.
Embora o texto original, escrito em inglês, remonte à decada de 1960, recentemente, em 2008, foi traduzido para o português por Lenita Rimoli Esteves e Francis Henrik Aubert, da Universidade de São Paulo. Além da tradução, os pesquisadores investigaram a história por trás da criação do texto e indagaram alguns dos pressupostos teóricos da autora.
Resumidamente, trata-se de uma incursão de Bohannan por uma tribo da África Ocidental, os Tiv, onde, entre seus estudos de antropologia, deparou-se com a chance de tentar provar a um amigo britânico que o entendimento de Shakespeare é universal à raça humana, isto é, independe das circunstâncias histórico-culturais que fazem parte de uma determinada sociedade.
Vocês americanos – disse um amigo – freqüentemente têm dificuldade com Shakespeare. Afinal de contas, ele era um poeta tipicamente inglês, e é fácil interpretar o universal de forma equivocada por uma falta de entendimento do que é particular. Protestei que a natureza humana é praticamente a mesma em todo o mundo; pelo menos o enredo geral e a motivação das grandes tragédias seriam sempre evidentes – em qualquer lugar (…) Para pôr fim a uma discussão que não conseguíamos concluir, meu amigo me deu um exemplar de Hamlet para que eu o estudasse (…) ele esperava que a leitura elevasse minha mente, distanciando-a de seu ambiente primitivo, e que eu, por meio de prolongada meditação, atingisse a graça da interpretação correta (ESTEVES e AUBERT, 2008, p. 141, grifo nosso).
Nota-se, na fala da pesquisadora, no mínimo, uma certa precipitação, ao afirmar que “a natureza humana é praticamente a mesma em todo o mundo”. É fato que o homem carrega uma carga genética básica que o diferencia de qualquer outro ser vivo, tornando-o, ao menos biologicamente falando, humano. Todavia, esse mesmo homem jamais foi um ser atemporal, anespacial ou insocial. Sendo assim, como Bohannan logo descobriria, o meio exerce, sim, grande influência nas possíveis leituras que se faz de um objeto e que, partindo de tal premissa, nunca se atingiria “a graça da interpetação correta”.
Uma série de barreiras culturais e conceituais interpuseram-se entre a narração da história de Hamlet, pela antropóloga, e sua absorção pelos nativos africanos. Essas barreiras não lhes permitiriam, em tempo algum, ter as mesmas reações da norte-americana (ou da sociedade ocidental como um todo) diante da clássica tragédia de Shakespeare.

Questões que nos parecem óbvias, por exemplo, a indignação do jovem Hamlet diante do precipitado casamento de sua mãe com o cunhado, não são óbvias para a tribo. Para eles, o caminho mais natural seria a viúva se casar com o irmão do falecido, e o mais depressa possível, caso contrário ela não teria quem cuidasse de suas plantações (ibidem, p. 136).
Ao retornar para casa, Bohannan levaria em sua bagagem uma valiosa lição:
Algum dia – concluiu o velho, ajeitando a toga esfarrapada – você precisa nos contar mais histórias da sua terra. Nós, anciãos, vamos instruí-la sobre o verdadeiro significado delas, para que, quando você voltar para sua terra, seus anciãos constatem que você não ficou sentada no meio do mato, mas sim no meio de gente que sabe coisas e que lhe ensinou sabedoria (ibidem, p. 158).